domingo, 23 de novembro de 2008

De asfaltos e politicagens

A rua da casa dos meus pais, em Lorena, só recebeu calçamento em 1991. Até então, amassávamos barro em qualquer chuvinha que caísse. Era um inferno sair de casa com toda aquela lama na rua.

Quando criança, meu sonho era ver a rua asfaltada. A alternativa eram os horrorosos paralelepípedos, irregulares e que detonam qualquer bicicleta ou aumentam em muito qualquer ruído de suspensão nos carros – ainda não era comum calçar ruas com o que os catarinenses chamam de “lajota”, aquela em forma hexagonal.

Meu pai, sabiamente, dizia não querer asfalto. – Deixa a frente da casa muito mais quente, é uma porcaria para remendar, se tiver que abrir pra consertar a rede de esgotos e, além disso, ainda dificulta o escoamento da água da chuva – ele justificava.

Estou fazendo todo este preâmbulo porque havia decidido evitar falar de política aqui no Pastel. Mas é impossível ficar alheio a tudo que está acontecendo na cidade.

Tenho passado, neste tempo todo de chuvas em Florianópolis, por várias ruas alagadas. É flagrante o trabalho mal feito, a falta de capacidade de escoamento da água da chuva, a falta de planejamento e tudo o mais. E o que isto tem a ver com a rua do meu pai, em Lorena, a 900 quilômetros daqui?

É que uns anos depois de terem calçado a rua lá do pai, venceu a eleição um candidato que tinha sido prefeito na cidade vizinha e ganhado fama de ser “tocador de obras”, que tinha asfaltado a cidade toda, etc, etc, etc. Eleito em Lorena, o tal prefeito desandou a espalhar asfalto pelas ruas dos bairros, sem se preocupar com mais nada. Alguma semelhança?

O povo, imediatista, adora este asfalto na porta de casa. Tanto adora que reelegeu os dois. Lá, em 2000. Aqui, em 2008. A sorte do povo de lá é que não chove tanto em Lorena. O azar do povo daqui é que tem pelo menos mais quatro anos nas mãos desta gente.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Faça um esforço pra não fazer nada

Uma das maiores desvantagens da vida dita “moderna” é a falta de tempo para se dedicar às coisas simples e boas da vida. Sabe aquele tempinho ao lado da família, fazendo um programinha sem compromisso, sem estresse?

O negócio é fazer um esforço para aproveitar todos os momentos. Quando a gente vê, já passou. Mariana nasceu ainda ontem e já está com sete anos.

Sinto falta de ficar mais sossegado com a Carine e a Mariana. Sair de casa, passear sem hora pra voltar, tomar um sorvete, comer alguma coisa em algum lugar diferente. Fazer dos momentos de folga verdadeiras férias. Isto é simples e bom.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Excesso de honestidade ou preguiça?

Para mim, não existe história que ilustre melhor a idéia de honestidade – ou de preguiça – que um episódio de julho de 1999, em Alfenas, cidade mineira onde meu irmão Cláudio fez faculdade. Estávamos lá para a formatura dele.

Lá pelas tantas, precisamos de uma lâmpada.

– Tem uma vendinha aqui nessa rua, um pouco mais pra cima – ensinou meu irmão.

Lá fomos nós – meu outro irmão, Jorge, e eu – atrás da tal vendinha. Estava, na verdade, mais para bar do que para armazém. Um senhor gordo, sentado em uma cadeira virada, com as mãos apoiadas no encosto, dava as boas vindas. Fosse em Casablanca, o boteco seria o Blue Parrot e ele seria o Sr. Ferrari. Mas, lembrem-se, estávamos em Alfenas.

O que primeiro nos chamou a atenção foi o fato de que estava quase às escuras – isso devia ser pouco mais que seis da tarde. Apenas uma lâmpada, fraquinha, alumiava (porque no interior a luz não ilumina, ela alumia) o local.

- Boa noite! – cumprimentamos.

- Boa noite – respondeu o botequeiro.

- É... tá aberto? – perguntei, dado o silêncio sepulcral do local.

Ele virou-se bem devagar, olhou pra dentro do bar, voltou-se com a mesma “ligeireza” e respondeu:

- Tá!

- É que tá escuro e achei que tivesse fechando – expliquei, tentando justificar a pergunta.

- Eu deixo assim porque não tem ninguém e eu vou gastar luz pra quê, né? – respondeu o Sr. Ferrari das Alterosas.

- É verdade – concordei, tentando descobrir se o bar estava escuro porque não entrava ninguém ou se não entrava ninguém justamente porque estava tudo apagado. – Mas... tem lâmpada?

- Tem.

- O senhor vê duas pra nós, por favor? – pedimos.

Deve ter sido nesta hora que ele resolveu que não levantaria dali por dinheiro nenhum, ainda mais por duas míseras lâmpadas.

- Olha, ter eu até tenho. Mas se vocês forem um pouco mais pra cima aqui na rua, virando ali à esquerda tem um supermercado. Lá deve ser mais barato. Sabe como é, né? Supermercado é sempre mais barato. Veja lá se ainda tá aberto. Se tiver fechado, volta aqui que eu vendo pra vocês – ele respondeu, para espanto de dois atônitos postulantes a freguês.

- Tá bom – respondi, ainda sem entender se aquilo era excesso de honestidade ou pura preguiça. Tendo a achar que era honestidade.

Pra encurtar a história, encontramos o tal supermercado, compramos as lâmpadas – até hoje não sei se eram mesmo mais baratas ou não – e, na volta, voltamos a passar em frente ao Blue Parrot alfenense.

- Acharam? – perguntou ele.

- Sim, achamos, muito obrigado.

- Que bom! – sentenciou.

Como dizia o garçom de uma lanchonete que eu freqüentava em Florianópolis: “Eu nunca vi disso!!”

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Farofa de içá é como Dry Martini - todo mundo tem uma receita

As receitas de farofa de içá variam quase tanto quanto a de um Dry Martini (Hemingway que me perdoe). Tem quem simplifique e faça apenas fritinho, como uma farofa comum. Depois de fritos em tempero comum, acrescente a farinha e corrija o sal.

Tem quem coloque alho picadinho, para reforçar o sabor e castigar de vez os estômagos mais delicados que se aventuram pela primeira vez nesta pedreira. Outros, a exemplo do meu amigo Fernando, colocam também bacon picadinho. O que não pode faltar é farinha de mandioca – aquela mais grossa, muito comum em SP e no RS, que ajuda na “crocância” (será que existe esta palavra?) da coisa toda –, cerveja bem gelada e, é claro, um bom papo.

Taí, meus caros, o segredo da coisa. Vou a Lorena no final do ano e quero ver se faço um vídeo mostrando o preparo. Fernando já disse que tem içá congelado guardado, só esperando. Eita ferro!!

Içás - a caçada

Questionado pela Alexandra, resolvi descrever todo o esforço de guerra que envolve a captura do içá, iguaria muito apreciada no Vale do Paraíba, conforme descrevi no post anterior.

Todos os anos, ali por setembro ou outubro, o povo do Vale já começa a se assanhar. É o período em que as formigas saúvas estão se preparando para botar os ovos e formar novas colônias. Há quem diga que os formigueiros cheios de içás “estouram” em dia de trovoada. Outros, como o serralheiro Manolo – pai de uma colega de escola e que caçava, mas não comia – garantiam que a “colheita” era mais farta quando caía uma garoa fininha. Em seguida à garoa, quando começava a esquentar de novo, os içás praticamente “brotavam” da terra.

Então, meus caros, era a festa. Os mais corajosos chegavam a se enfiar no formigueiro – muitos devidamente paramentados com aquelas horrorosas botas de borracha – e arrebatavam porções fartas. Meu velho amigo Chicão é destes aí.

Outros, menos aquinhoados com coragem – ou dose de loucura, depende do ponto de vista –, ficavam à espreita do lado de fora e aproveitavam o vacilo das formigonas pra garantir uma farofinha sem muito esforço. Confesso que sempre fiz parte desta segunda turma.

Para quem nunca viu içá nem em foto, ela tem o corpo dividido em três partes – a cabecinha com o ferrão, o meio e a bundona. A bunda e o meio são aproveitados, desprezando-se a cabecinha com o ferrão, as asas e as pernas.

Depois de devidamente limpos e lavados, os içás são levados ao fogo – também dá pra congelar e guardar para aquele sobrinho que mora em Santa Catarina.

Içás

Existem pratos, quitutes e petiscos universais. É o caso, por exemplo, da batata frita, da calabresa, aipim (ou mandioca) e uma série infindável deles. Por outro lado, há outros petiscos cuja apreciação é tão localizada que é até difícil explicar para moradores de outros lugares.

Um destes é o içá – ou a içá. Para quem não conhece, içá é a fêmea da formiga saúva. Na porção paulista do Vale do Paraíba, a farofa de içá é muito apreciada. O mais interessante é que dificilmente você vai encontrar em outro lugar quem já tenha ouvido falar em içá. Toda vez que eu conto que para alguém “de fora”, a primeira reação é de incredulidade. A segunda, dependendo do “refinamento” do paladar do sujeito, é de nojo. Só experimentando para saber.

Monteiro Lobato, o escritor que melhor retratou a vida do homem simples do Vale do Paraíba, chegou a dizer que “o içá é o caviar do taubateano”. Mas, se você acha que vai encontrar o prato em restaurantes e lanchonetes, pode esquecer. Isso é feito em casa, para os amigos.

É claro que tem muita gente que não gosta – minha mãe, por exemplo, não pode nem ouvir falar. Minha tia, irmã de meu pai, é capaz de se enfiar no formigueiro para garantir uma porção generosa.

Quando viajo para Lorena, sempre tenho onde matar a saudade da farofinha de içá – com cerveja, é claro. Meu tio Carlinho, minha tia Odete e meu amigo-irmão Fernando sempre têm uma porção reservada, pronta para ser fritinha e transformada em farofa. Você, leitor ou leitora, pode desfazer esta cara de nojo. É bastante crocante e com sabor marcante. E não mata ninguém. Em outro post eu coloco uma receita bem facinha de farofa de içá.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Almoço mineiro

Desde que concebi este blog, fiquei imaginando um texto que desse a exata dimensão do que eu queria. Entre a concepção e o parto, descobri esta crônica maravilhosa do espetacular Rubem Braga. Deliciem-se.

Almoço Mineiro

Rubem Braga

Éramos dezesseis, incluindo quatro automóveis, uma charrete, três diplomatas, dois jornalistas, um capitão-tenente da Marinha, um tenente-coronel da Força Pública, um empresário do cassino, um prefeito, uma senhora loura e três morenas, dois oficiais de gabinete, uma criança de colo e outra de fita cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca.

Falamos de vários assuntos inconfessáveis. Depois de alguns minutos de debates ficou assentado que Poços de Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois de ouvidos vários oradores, que estava um dia muito bonito. A palestra foi decaindo então, para assuntos muitos escabrosos: discutiu-se até política. Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram idéias a respeito do separatismo, um cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram outros, que, infelizmente, não nos foi possível anotar, em vista de estarmos situados na extremidade da mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o soldado desconhecido, as tardes de outono, as flores dos vergéis, os proletários armênios e as pessoas presentes. O certo é que um preto fazia funcionar a sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento. Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho funcionário municipal.

Mas nós todos sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a Força Pública , nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima de tudo pairava o divino lombo de porco com tutu de feijão. O lombo era macio e tão suave que todos imaginamos que o seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína. O tutu era um tutu honesto, forte, poderoso, saudável.

É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam molinhos, quase simples gordura. Outros eram duros e enroscados, com dois ou três fios.

Havia arroz sem colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia também copos cheios de vinho ou de água mineral, sorrisos, manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas árvores. E no fim de tudo houve fotografias. É possível que nesse intervalo tenhamos esquecido uma encantadora lingüiça de porco e talvez um pouco de farofa. Que importa? O lombo era o essencial, e a sua essência era sublime. Por fora era escuro, com tons de ouro. A faca penetrava nele tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria, levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e meia da tarde, na primavera. O gosto era de um salgado distante e de uma ternura quase musical. Era um gosto indefinível e puríssimo, como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo louro. Os torresmos davam uma nota marítima, salgados e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida muito longe do solo, sob um prado cheio de flores, terra com um perfume vegetal diluído mas uniforme. E do prato inteiro, onde havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde molhado da couve — do prato inteiro, que fumegava suavemente, subia para a nossa alma um encanto abençoado de coisas simples e boas.

Era o encanto de Minas.

São Paulo, 1934.

Abrem-se as cortinas...

...e começa o espetáculo.

Como não tenho muita criatividade para aberturas (meus amigos jornalistas dizem que não tenho lead), resolvi plagiar o saudoso Fiori Gigliotti, um dos maiores narradores esportivos (leia-se futebol) do rádio brasileiro.

Passei minha infância ouvindo as narrações do Fiori na Rádio Bandeirantes, aquela rede de rádios sediada em São Paulo e que tinha a suprema honra de ter entre suas afiliadas a gloriosa Rádio Cultura de Lorena. Naquele tempo, eram raras as transmissões de futebol pela TV nas tardes de domingo - as emissoras transmitiam somente as fases finais dos campeonatos. Nas palavras de Fiori, eu ia tecendo a jogada, para depois conferir na TV se a coisa tinha sido como eu imaginara.

Era comum ficar ao lado do meu pai, ouvindo os jogos do Corinthians com a narração vibrante e poética de Fiori Gigliotti. Saudades deles: do meu pai, que vou rever neste final de ano, e do Fiori, que só tenho como ouvir na memória e nos arquivos que encontro esparsamente pela Internet.

Grande abraço e sejam bem-vindos ao Pastel de Feira, um blog voltado àqueles que gostam das coisas simples e boas da vida.